segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Rodopiando ao som dos bandolins



Uma síntese da natureza, antagônica a todas as outras gurias. Não gosta de multidões, de badalações, sempre cercada de pretendentes, de amigos, mas sempre sozinha, dentro de seu próprio universo. Com olhos que mais parecem duas bolitas castanhas, enxergava o mundo de outro ângulo, conseguia transitar entre o real e irreal, uma verdadeira garimpeira de lugares. Sempre com mania de perambular pelas ruas das cidades, nos horários mais alternativos, apenas com sua velha maquina fotográfica. De um click aqui e outro ali, conseguia impactar e encantar as pessoas. Era a forma que tinha de tocar as pessoas, de mostrar esse tal universo paralelo por onde transitava. Sempre uma incógnita, era impossível prever suas ações, se movia e agia ao seu bel prazer, uma força livre como o vento. Muitas vezes simplesmente parava em meio a vielas e ruas e ficava observando, olhava para cima, para baixo, procurando uma forma de conectar o seu mundo ao nosso. Suas fotos, seu olhar, juntavam o passado com o contemporâneo, conseguia transmitir a nostalgia de prédios velhos, de lugares abandonados e menosprezados pelas pessoas. Fazia do silencio uma orquestra de imagens.

Morena dos olhos mais risonhos que já conheci, olhos que conseguiam penetrar e invadir nosso ímpeto, sempre achei que ela conseguia deslumbrar os pensamentos de quem por engano se perdia naqueles grandes olhos castanhos. Mas, carregava uma insatisfação crônica, certo ar de melancolia, por não conseguir encontrar um lugar no nosso mundo, por ter nascido na época errada. Tinha uma lista enorme de corações partidos, raramente ficava mais que três meses com alguém, era independente de mais para homens tão dependentes e inseguros, sempre muito intensa, amava e esquecia como ninguém, a e como esquecia bem. Ela era a definição perfeita de contradição, amava o que era antigo tanto quanto não aguentava a mesmice das coisas, por isso talvez vivesse trocando de namorado, nunca jogava o que ganhava fora, mas não perdia muito tempo pensando nos donos dos presentes. Como ela mesma dizia: “por que eu deveria pensar no passado”. Uma grande contradição para quem vivia flertando o passado com o olhar e a maquina fotográfica.

Adorava teatros, já cinema, era uma epopeia para ver um filme com ela, sempre aparecia dois três minutos antes de o filme começar, sem nunca deixar de ir a bilheteria e perguntar: “Tem quantas pessoas?”. Ai, se tivesse mais de meia dúzia de gatos pingados, já dava meia volta e saia para algum boteco, bar ou pub sem nem dar satisfação, apenas saia andando. Só na terceira, quarta tentativa que entendi, ou acho que entendi, o cinema era o único lugar aonde ela trocava sua solidão, o silencio, pelo som das suas palavras, e ela realmente falava, passava o filme todo analisando, criticando, e conversando.

Nunca reclamava, a não ser quando andava pela Andradas, dizia que lá era o exemplo vivo da degradação humana, o porquê preferia a solidão, vivia reclamando: “para que esses carros, porque tanta gente, isso tudo atrapalha meu pensamento, olha como poluem meu mundo, tão sempre correndo, todos egoístas, não ligam, não vêem o que estão perdendo, não sentem, não vivem, até as estatuas tem mais vida que esses objetos vazios que ficam andando de um lado para o outro”. Ai, já viu, ficava emburrada, olhando para o vazio, ate que depois de incontáveis minutos de silencio, desligava a sua maquina fotográfica, e dizia: “Droga, vamos...”. E eu já sabia que ela queria ir para algum boteco, tomar algo forte o suficiente para desliga-la do mundo. Há, mas como ela ficava bonita irritada, sempre que eu podia retrucava: “Aonde ?”, ela fechava mais ainda aquele lindo rosto, e apenas esboçava um “ Não te faz, tu sabe” e continuava andando. Não discutia, na verdade não me lembro de termos discutido uma única vez, sempre quando não gostava de algo apenas levantava e saia andando. 


Ela é assim, uma armadilha da natureza, consegue atrair apenas com o olhar e encantar com seu silencio, porem é praticamente inalcançável, é pura essência, uma ilusão que termina antes mesmo de virar realidade. Um verdadeiro desafio, que todos querem ter, mas ninguém conseguiu, com sorte alguns passam certo tempo ao seu lado,o que já é motivo de comemoração, pois assim pelo menos aprendem á apaziguar o coração com o silencio dos lábios dela e dos recantos mais surpreendentes da cidade.


"Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projecto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade."
Pablo Neruda